Torre de Moncorvo
Campos Monteiro
Abílio Adriano de Campos Monteiro, filho de José Carlos Monteiro, natural de Braga, e de Maria Joaquina de Campos, natural de Torre de Moncorvo, nasceu nesta vila transmontana a 7 de março de 1876, sendo batizado na igreja matriz no dia 10 do mês seguinte.
Após a realização do exame de instrução primária, transferiu-se, aos 8 anos de idade, para a zona de Ribeira Lima, na companhia de um tio. Concluiu os estudos liceais em Viana do Castelo, em 1891.
Em 1897, casou com Olívia Barros Coutinho, filha do médico Tavares Coutinho, de S. Mamede de Infesta
Em 1902 concluiu a licenciatura com a defesa da dissertação inaugural intitulada "A Neurasthenia (Apontamentos e opiniões)"
Foi administrador do concelho da Maia, deputado monárquico pelo distrito do Porto durante a governação de Sidónio Pais.
Juntamente com Ferreira de Castro, foi cofundador da "Civilização – Grande MagazineMensal", editado entre 1928 e 1937
Campos Monteiro, um dos escritores mais populares do seu tempo, morreu a 4 de dezembro de 1933, na sua casa de S. Mamede de Infesta.
Levantei-me da cama muito cedo
e, sentindo a alegria de viver,
fui abrir a janela sem segredo,
para cumprimentar o Roboredo,
um velho amigo, meu que me viu nascer.
Da varanda que dá para a montanha,
com um gesto amigável, saùdei-o.
Que linda Serra, de beleza estranha!
Que pena que ela seja assim tamanha
e t’a não possa eu mandar pelo correio!…
Não sei de mais Formoso anfiteatro
nem de mais calmo, doce e Cândido vergel.
É o panorama que eu mais idolatro.
Lembra o pano de fundo d’um teatro
no terceiro ato do “Guilherme Tell “
Calcula: Ao fundo, as vinhas verdejantes,
vetustos olivaes e Amendoeiras esguias.
Depois, florestas de árvores gigantes,
e, de onde a onde, as manchas rutilantes
de estevas, urzes, arreçãs, peonias…
Tudo isto tão polícromo e tão vivo,
n’uma tão justa orquestração de côr,
que a mim mesmo pergunto, Heitor, porque motivo
na vila linda de onde sou nativo
nunca nasceu um único pintor!
São léguas de terreno. E em tal distância,
só duas casas sobre o azul dos céus!
– Duas casas banaes, pobres, sem importância…
N’uma delas passei a minha infância.
Na outra mora a Vírgem Maria Mãe de Deus.
Velha Casa da Serra! Que saudades!
Do teu balcão, que lindo era o sol-pôr!
Ouvia-se na vila o toque de trindades,
e o fumo que subia das herdades
envolvia n’um véu as ribas do Sabor!
Nas montanhas da Lousa o sol caía,
inda tocando de oiro o Cabeço-da-Mua…
A Vilariça, exangue, adormecia…
Vinha o crepúsculo… terminava o dia…
– silêncio enorme!… e despontava a lua!…
Lá vejo ao lado da mancha verde luzidia
das figueiras do cima-do-pomar,
ás quaes, quando criança, impávido subia,
enquanto em baixo meu Avô fingia
que dormitava, p’ra me não ralhar.
Dentro do souto vejo ainda o bardo
para o rebanho á noite se acolher.
D’aquele sítio que lembranças guardo!
Foi ali mesmo que o meu tio Eduardo,
quási brincando, me ensinou a ler!
Da Conceição, ao fundo, eis a capela,
com ar de mágoa e desolação.
Há meio séc’lo já que houve a febre amarela.
Enterravam-se os mortos juntos d’ela,
e ficou assim triste desde então…
Quando eu passava no caminho em frente,
a minha Mãe mandava-me ajoelhar,
– e de mãos postas, fervorosamente,
rezava ainda pela pobre gente
que a epidemia veio ali matar!
O sol já vai em meio da subida,
e o meu olhar, ancioso, não descança.
A saudade é uma dúlcida bebida!
Recordar é viver de novo a vida,
e eu sinto-me hoje inda uma vez criança!
E vejo agora na cortina em frente
uma brigada de trabalhadores.
Cavam a terra estéril…lançam-lhe a semente…
Crispa-se o húmus, dolorosamente…
Ninguém pode ser mãe sem sofrer dores!
Nos pedregosos, húmidos carreiros,
passam rebanhos chacalhando. Atrás,
precedidos dos cães, os pobres pegureiros
chamam por eles, para que os rafeiros
deixem as aves e os reptis em paz.
Pende-lhe’a negra taleiguita ao lado,
por uma fita de bezerro presa:
um pão centeio já petrificado,
um pedaço de porco mal curado,
quatro medronhos para a sôbremesa…
Se a fome aperta, ou sentem o perigo
dos escorpiões e víboras subtis,
o mesmo naco de toucinho antigo
lhe serve de alimento e de presigo
e saras as mordeduras dos reptis.
Horas de almoço… O chefe da brigada,
fazendo um gesto á gente que moureja,
-”Louvado seja Jesus Cristo!”- brada.
E n’um momento, abandonando a enxada,
todos respondem – que bemdito seja!
Levanta os olhos mais. Vejo a Fraga do Facho,
talhada a pique, como uma parede,
Com o seu manto de musgo e heras e escalracho.
D’ela dimana e corre serra abaixo
a água pura nos mata a sêde.
Emergindo da rocha, a custo e receiosa,
deita a fugir a da vila em direção.
E na carreira louca e temerosa
traz sobre o dorso pétalas de rosa,
raminho de alecrim e serpão.
Pelas caleiras de granito é vel-a
cantarolar, correr, cheia de pressa!
E os castanheiros curvam-se sôbre ela,
fazem-lhe sombra com a sua umbela
para que o sol do estio a não aqueça.
E as ovelhas bebem á vontade…
Voando, as pombas veem matar a frágoa…
-Minha terra natal! Como não há-de
ser cheia de pureza e de bondade
a gente que depois bebe esta água! ….
Parto p’ra terra. Sinto-me doente,
e é tal o amor que tenho ao meu cantinho,
que eu creio que melhoro de repente
ao avistar as veigas do Pocinho.
Salto ás duas da tarde na estação,
e meto encosta abaixo em direção ao rio.
O ar é tépido e brando: uma consolação.
Vê tu: no Pôrto faz ainda frio,
na minha terra já parece v’rão.
Do outro lado do rio a diligência espera
-e começa a ascensão. Nem sequer imaginas
quão pitorescas são estas ravinas
agora, ao começar da primavera!
Como um cortejo, mal organisado,
de donzelas coquettes e palmeiras,
todas de branco, as amendoeiras,
descendo em grupos as ladeiras,
dão-nos a sugestão de irem p’ra um noivado.
E cada encosta é um tapete apenas
de lírios, arreçãs, malmequeres, verbenas…
N’uma grande cortinha entre dois fossos,
sulcada de carreiros e de trilhos,
casa-se ao verde intenso dos tremoços
o amarelo vibrante dos pampilhos.
Passam cachoeiras rindo: esse riso impudente
dos rapazes que veem a saír d’uma escola;
e em volta os lotus de húmida corola
tomam seu banho, consoladamente.
Aos raios de oiro pelo sol vibrados,
as schistos e os granitos dos montados
lançam scintilações de lantejoulas.
Corre um filete d’agua lá no fundo.
E os trigos riem para o céu profundo
pelos lábios vermelhos das papoulas…
A quatrocentos metros de altitude
o Amâncio pára o carro, a descançar o gado.
E agora o quadro é outro e muito mais variado.
Dize-me se não dá mesmo saúde
olar este horisonte dilatado!
Oque temos subido! Olha o Monte-Meão,
há pouco inda tão alto, e agora n’um fundão!
Por de sôbre ele ele vê-se uma faxa amarela
de montanhas, ao longe: é a Serra da Estrêla.
Da Burga, ao norte, a massa informe.
Serras ao poente. A léste o Roboredo infindo.
E este caixilho sumptuoso, enorme,
que lindo quadro ele emoldura!…lindo!…
Pela vertente das encostas,
co’a rigidez d’uma muralha,
as oliveiras, em cordões dispostas,
lembram soldados, de mochilas ás costas,
ordenados em linha de batalha.
E há vinhedos sem fim… imensos laranjaes…
E na toalha verde-escura
dos azevens e cereais
põe uma intensa nota de frescrura
as pinceladas brancas do pombaes.
Da Vilariça, em baixo, a multicor alfombra,
tão fértil que sustenta três concelhos.
A parte ocidental mergulha já na sombra,
mas no casaes de léste há reflexos vermelhos.
Corre a meio o Sabor, todo apressado,
porque sabe que o Douro o está a esperar;
e ao chegar junto d’ele, fatigado,
fundem-se n’um abraço demorado,
descançam, dão a volta-e largam para o mar!
Dependurados pela serrania,
logarejos, torreões, flechas de igreja.
Nos altos picos, d’um verniz de oleografia,
aínda a neve á luz do sol alveja.
Que variedade, d’uma e de outra banda!
Como isto é grandioso, e ao mesmo tempo ameno!
São a Suíssa, a Itália, e a própria Holanda
em dez légua quadradas de terreno!
Olha agora á direita, e vê: parece um cromo.
No sopé da montanha uma sé colossal,
e em volta cinco ou seis centos de casas, como
ao redor de um castelo um burgo mediéval.
É Moncorvo! Está perto o termo do caminho…
Lá vejo a casa em que eu á luz do mundo vim;
paira-lhe sôbre o tecto um fumo côr de arminho,
tão branco, que parece um lenço de alvo linho
posto ali a acenar, para chamar por mim!!
Ás Aveleiras, desço e sigo a pé. É perto…
‘Stavam d’antes aqui a esperar-me-era certo!-
meu Pai e minha Irmã, ambos a par.
Mas a Morte passou, e levou-os consigo.
Vê-se d’aqui, porêm, o seu jazigo,
e é p’ra ele que mando o meu primeiro olhar.
Agora, preparar! Vamos calcar a argila
da rua que conduz mesmo ao centro da vila,
e há caras conhecidas nas janelas
e ás portas, a tomar o fresco. E em todas elas,
mal eu desponto, surge um clarão de alegria.
Tenho de saùdar, deizer se passo bem,
e perguntar depois como eles vão, tambem.
E n’esta via-sacra atroz da Cortezia,
vou seguindo e parando… até fundar o dia.
Aque tens, logo á entrada as senhoras Botelhos,
o Daniel e a mulher… Coitados! Estão velhos,
mas sempre amigos: Dáphnis e Chloé.
Depois, no Lageado, a gente que passeia
n’este caír-de-tarde idílico de aldeia.
Caio em pleno triunfo! É a hora do café,
e o botequim do Ernesto está au grand complet.
E na Rua das Flores, e na Praça
toda a gente que está me saúda e me abraça.
N’um banco do Castelo, o ti’Zirra, cèguinho,
-santo velho! cegou de tanto trabalhar!-
levanta-se, a sorrir:-”Deus o traga, visinho!”-
E a sua mão tremente de velhinho
procura a minha mão, a tactear!
Meus bons patrícios, cheios de virtudes!
Honesta, digna, hospitaleira gente!
Como eu me sinto bem entre os seu braço rudes,
e como folgo em vel-os novamente!
Ao penetrar na minha rua, todos
sáem de casa para me abraçar.
Recebo beijos.. efusões a rôdos…
E a Lídia, á porta, grita com maus modos:
-”Deixem-n’o em paz, que há de querer jantar!”-
Porêm, sentado á mesa, tão contentes
sinto os olhos, a alma, o coração,
que nem toco nos pratos excelente
cosinhados por minha devoção.
E minha Mãe -coitada!- a sorrir e a dizer:
“ Come, meu filho! Vais adoecer
se começas assim a jejuar!”-
Como há de ter vontade de comer
a bôca que só tem desejos de beijar!